João Alves Torres Filho ( Joãozinho Da Goméia )

Nasceu em 27 de março de 1914 em Inhambupe, Bahia. Sua família era católica e chegou a ser coroinha da paróquia de sua cidade. Mas o menino parecia realmente já vir predestinado a vivenciar o mundo das tradições religiosas afro-brasileiras, mesmo antes de se iniciar em uma casa de culto.

Na pequena cidade onde nasceu, distante 153 km da capital, aos 10 anos já demons-trava sua forte personalidade, como bom filho de lansã. Aos 17, deixou a família e rumou para Salvador, onde fez de tudo para sobreviver. No armazém onde trabalhou, conheceu uma senhora que muito lhe ajudou e que considerava como sua madrinha. Foi ela quem o levou ao terreiro de Severiano Manuel de Abreu, que recebia a entidade conhecida como Caboclo Jubiabá.

MESMO CONSCIENTE DA GENEALOGIA E HIERARQUIA DOS DEMAIS TERREIROS, CONSEGUIU IMPOR SUA AUTORIDADE E SE LEGITIMOU AO LONGO DOS ANOS

Uma das muitas histórias que se conta sobre sua iniciação é o fato de Joãozinho sofrer de fortes dores de cabeça sem explicação ou cura por meio da medicina. Assim que se realizou sua feitura, as dores de cabeça cessaram; teriam sido apenas um aviso de que o menino já vinha com o destino traçado pelos Orixás, que cobravam sua iniciação.

Em torno da figura de Joãozinho da Goméia sempre houve muita polêmica; para muitos, que buscavam formas de criticá-lo, sequer teria sido "feito". Mas há filhas-de-santo de Pai Joãozinho que contam todo o seu processo de iniciação. Uma delas, aos 92 anos declarou ao jornal Correio da Bahia que tinha dúvidas de que, se ele fosse vivo, alguém tivesse coragem de contradizê-Io.

 

 

 

 

o INíCIO DA TRAJETÓRIA EM SALVADOR
Após a feitura de santo com Severiano Manuel, aos 18 anos Joãozinho já tinha seu terreiro, onde mantinha os padrões do Candomblé de Caboclo e Angola, cultuando Orixás, Encantados e Espíritos de ameríndios. Com a morte de seu Pai-de-Santo, segundo alguns relatos, Joãozinho "refaz" o santo no terreiro do Gantois com Mãe Menininha, de Nação Keto. Começa então a polêmica que cercaria toda a vida de Joãozinho em relação a seus trabalhos no Candomblé a mistura de Nações.

Mas "Seu" João da Pedra Preta foi de fato importante para a consagração do culto de Candomblé Angola e sua popularização. Intelectuais como Jorge Amado e Édison Carneiro projetaram o Terreiro da Goméia para o resto do Brasil. Joãozinho foi importante colaborador de Édison Carneiro durante a realização do II Congresso Afro-Brasileiro, realizado em 1937, em Salvador. Segundo o escritor e pesquisador das tradições africanas, Joãozinho era, aos 24 anos, um Pai-de-Santo que se destacava no ambiente conservador da época. Mesmo consciente da genealogia e hierarquia dos demais terreiros, con¬seguiu impor sua autoridade e seu nome se legitimou ao longo dos anos.

Com relação às polêmicas levantadas por alguns pesquisadores, ou mesmo pais e mães-de-santo da época em torno de sua iniciação e de seus trabalhos como sacerdote pelo fato dele, em seu culto, incorporar também entidades ameríndias - Caboclos e Encantados, assim escreveu a pesquisadora americana Ruth Landes em seu livro 'A Cidade das Mulheres':

"Caboclos não são Orixás, mas Espíritos Encantados, originários das religiões indígenas, sem relação com a África". Os chamados Candomblés de Caboclo eram desprezados pelos povos de Keto sob a alegação de que era preciso preservar a pureza com relação às raízes africanas. Mas a associação e a permanência dos Caboclos nos cultos de Angola não se devia à "falta de pureza" africana. O povo Bantu também tem suas tradições, sendo que a mais forte em sua religiosidade é o Culto aos Ancestrais. Foi para preservar a ancestralidade dos donos da terra - os índios, que esse povo incorporou em seus cultos os Caboclos. Outra citação preconceituosa de Landes: "Há um simpático e jovem pai Congo, chamado João, que quase nada sabe e que ninguém leva a sério, nem mesmo as suas filhas-de-santo ( ... ); mas é um excelente dançarino e tem certo encanto. Todos sabem que é homossexual, pois espicha os cabelos compridos e duros e isso é blasfemo. - Qual! Como se pode deixar que um ferro quente toque a cabeça onde habita um santo!"

AINDA É
SURPREENDENTE HOJE OUVIR FALAR DE UM SACERDOTE DO RITO ANGOLA SENDO LEMBRADO
COM TANTO CARINHO PELO POVO DE SANTO

Mas o que incomodava os sacerdotes em joãozinho era a sua visão de futuro e sua grande contribuição para o crescimento e aceitação do Candomblé em outras áreas da sociedade, como as classes artística e política. Foi um homem que soube muito bem usar sua imagem à frente do tempo, divulgando a si mesmo e a sua roça.

Quantas vezes Joãozinho não afrontou sacerdotes e sacerdotisas ao se apresentar em público com seu Orixá, atitude não aceita e proibidíssima, mas que tornou sua dança famosa e fez dele um bailarino respeitado. Homossexual assumido, não se envergonhava diante de toda a repressão que havia naquelas primeiras décadas do século XX.

Em seu Candomblé Joãozinho era conhecido por incorporar o Caboclo Pedra Preta, entidade indígena. Era praticante do culto de Angola, e jovem ainda enfrentou a supremacia dos cultos Jeje e Nagô na antiga Salvador. Foi também por ser tão jovem e desafiador que acabou provocando nas tradicionais Mães-de-Santo baianas um sentimento de repulsa a seu trabalho - aos 26 anos de idade já havia assumido a chefia de seu terreiro, o primeiro, que ficava na Ladeira da Pedra. Logo depois, mudou-se para a rua que o tornaria famoso - a Rua da Goméia - que ficava no bairro de São Caetano, Cidade Baixa, onde tocava Angola e Keto, o que aumentava ainda mais o desprezo por seu nome.

Mas a verdade é que Joãozinho da Goméia se tornou um Pai-de-Santo famoso em uma cidade dominada pelas mulheres, e em torno de sua trajetória criou-se muita lenda. Mas sempre foi muito respeitado por seus inúmeros filhos-de-santo, com quem sempre foi muito rígido e autoritário.

Segundo Edison Carneiro, escritor e pesquisador das tradições africanas, Joãozinho era, aos 24 anos, um Pai-de-Santo que se destacava no ambiente conservador da época.

Joãozinho em seu terreiro na Goméias, entre as décadas de 1930 e 1940 em ritual de Candomblé Angola.
BabaLawo's Descendentes ( A Dotoda Nação De Angola - Bantu )
O QUE INCOMODAVA OS SACERDOTES EM JOÃOZINHO ERA A SUA VISÃO DE FUTURO E SUA GRANDE CONTRIBUiÇÃO PARA O CRESCIMENTO E ACEITAÇÃO DO CANDOMBLÉ EM OUTRAS ÁREAS DA SOCIEDADE, COMO AS CLASSES ARTíSTICA E POLíTICA
A MUDANÇA PARA O RIO DE JANEIRO

Sua fama como Pai-de-Santo atingiu realmente o auge com a mudança para o Rio de janeiro, onde se instalou na cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Ainda é sur-preendente hoje ouvir falar de um sacerdote do Rito Angola sendo lem¬brado com tanto carinho pelo povo de santo. Sua voz rouca, firme e afinada, saudava de Exu a Oxalá, e foi o mais importante agente na época em que começou a divulgação de termos usados no Candomblé por meio da mídia e das artes, que sempre foram seus grandes aliados. Ao ir para a região Sudeste com seu culto, Joãozinho da Goméia sabia da importância e das vantagens de tornar conhecidos os cultos afro-brasileiros. E sua influência se estendeu para outros estados; segundo pesquisa realizada em 1983, dos 24 mais antigos terreiros da capital e do litoral paulistas, oito haviam sido fundados por seus filhos e filhas-de-santo.


Da década de 1950 em diante Joãozinho já era muito famoso no Rio de Janeiro e, até sua morte, em 1971, era o Pai-de-Santo mais conhecido do Brasil. Apesar de tudo, nunca con-seguiu ser unanimidade entre o povo de santo - para muitos era um transgressor das ordens do culto e falava demais, características de um filho dos Orixás guerreiros Oxossi e lansã.

Há uma passagem que ficou fortemente marcada em sua trajetória desafiadora aos costumes da época o Carnaval de 1956, quando saiu pelas ruas fantasiado de "vedete Arlete" e foi duramente criticado e repreendido pelas maes-de-santo da Bahia e pela Federação Umbandista do Rio de janeiro, o que acabou lhe rendendo uma matéria na revista "O Cruzeiro", cujo título era: "Joãozinho da Goméia no Tribunal da “Umbanda". Em entrevista, o polêmico pai-de-santo de¬monstrou sua forte personalidade ao repórter, ao ser perguntado se sua atitude ao sair fantasiado de vedete não chocava os regulamentos do Candomblé. - "De nenhuma maneira. Primeiro, porque antes de brincar pedi licen?a ao meu "Guia", segundo, porque o fato de ter me fantasiado de mulher não implica em desrespeito ao meu culto, que é democrático. Os Orixás sabem que somos feitos de carne e osso e toleram superiormente as inerências da nossa condição humana, desde que não abusemos do Iivre arbítrio" .

Com relação as lalorixás baianas, Joãozinho se referia a todas com certo rancor, por nunca terem aceitado sua condição como importante sacerdote do culto. A única a quem se referia com mais respeito era Mãe Menininha, pois sempre manteve um relacio¬namento um pouco melhor com ela. Sobre Mãe Senhora, na época poderosa sacerdotisa do lIê Axé Opô Afonjá, certa vez disse: "Conheço Senhora, mas nunca tive maior contato com ela, e não lhe sou simpático. É um tipo de mulher muito orgulhosa; não é bem orgulho, é um pouco de ignorância ... ".
Joãozinho estabeleceu-se definitivamente no Rio de Janeiro em 1946, com apenas 32 anos de idade, quando já era bastante conhecido na Bahia. Sua festa de despedida foi assunto comentadíssimo na época - montou, no Teatro jandaia, um espetáculo com danças típicas do Candomblé, apresentando-se como um excelente bailarino.

Nem é preciso dizer que essa comemoração também acabou gerando controvérsia no meio do povo de santo, que sempre criticava os "desmandos" do babalorixá-artista. Mas, segundo relatou o próprio Joãozinho a um jornal carioca, sua mudança para o Rio se deu por acaso, quando foi à cidade de Duque de Caxias para "dar comida" ao santo na casa de uma de suas filhas. "Depois de concluído o ritual, voltei para a Bahia, mas não tive sossego; os amigos insistiam para que eu voltasse ao Rio e não tive outra saída senão mudar de vez para Caxias. Cheguei, gostei e fui ficando". Naquele momento, a Baixada Fluminense estava se tornando um grande reduto de terreiros dedicados aos cultos afro-brasileiros. Mas, como tudo a respeito de joãozinho da Goméia, sobre a sua mudança para o Rio de janeiro também pairam outras histórias. Uma delas diz que, ao desafiar seu Caboclo que o avisara que aquele não era o momento certo de mudar-se para o Rio, acabou dando tudo errado e ele chegou a ser preso, tendo que voltar para a Bahia. Ele esperou então, até que o Caboclo disse: ':Agora é a hora". Joãozinho foi definitivamente para o Rio e se deu bem. Na verdade, muitas histórias se construíram em torno do mito e ficou difícil desassociar a figura de Pai-de-Santo do lendário "joãozinho da Goméia".

Assim que fundou seu terreiro em Duque de Caxias, toda a beleza e riqueza de seus rituais chamaram a atenção. Várias pessoas passaram a freqüentar sua casa, e não só o povo de santo - todos, dos mais diferentes segmentos sociais, queriam aprender mais sobre o Candomblé. Joãozinho tornou-se famoso e tinha uma clientela que vinha das mais altas camadas da sociedade carioca. Nas festas mais importantes sempre havia uma área nobre dedicada a receber os mais influentes - políticos da Baixada Fluminense. Conta-se que na época, até a sogra de Juscelino Kubitschek frequentou suas festas. A exemplo dos políticos, muitos artistas também passaram a se interessar pelo Candomblé e a frequentar sua casa, pois ele próprio, fora das atividades religiosas, também era um artista e participou de diversos shows folclóricos como dançarino no Cassino da Urca, mostrando aos que não conheciam as danças sagradas dos Orixás. Em todos os relatos conhecidos, Joãozinho sempre foi muito elogiado como bailarino.

Com a chegada de Joãozinho da Goméia ao Rio de janeiro, a Nação Angola se viu devidamente instalada em Caxias, ganhando sua merecida importância. Mesmo para aqueles que nunca aceitaram ou simpatizaram com ele, admitem que foi o grande respons?vel pela expansão do Candomblé no Sudeste, a partir de 1950. Formou milhares de filhos-de-santo que fundaram seus próprios terreiros em São Paulo e no Rio de janeiro. Até hoje essas casas têm orgulho em dizer que são da raiz da Goméia:

Hoje em dia a verdadeira Goméia não existe mais. Depois de sua morte, em 1971, o terreiro em Salvador, no bairro de São Caetano e o de Duque de Caxias, não foram mantidos. O Caboclo Pedra Preta, sua entidade mais famosa, não teve um sucessor para representá-Io.
Seus problemas de saúde começaram em 1966, quando teve um derrame cerebral; talvez já fosse uma manifestação do tumor que o levaria à morte em 1971. Mas, segundo os membros de sua casa, a proximidade de sua morte já havia sido anunciada, mas não identificada a tempo. Na última festa que fez para lansã, esta teria relutado muito para se manifestar. Isso aconteceu também diversas vezes com o Caboclo Pedra Preta, que por quatro vezes sacudiu Joãozinho, mas não incorporou. Isso aconteceu pouco antes de sua viagem para São Paulo, onde viria a fazer sua passagem, durante cirurgia para retirada de um tumor cerebral. Quanto à cirurgia, Joãozinho havia concordado, pois, segundo filhas-de-santo que estiveram ao seu Jado durante a luta contra a doen?a, Pai Joãozinho desejava que se cumprisse a vontade de Deus.

A descendência de Joãozinho da Goméia ? maior no Rio e em São Paulo do que na Bahia. Após sua morte, o terreiro em Duque de Caxias passou por uma disputa de poder - uma menina de dez anos teria sido indicada para dar continuidade à Casa. Houve divergência interna e o terreiro acabou extinto. Em Salvador, na Rua da Goméia, o lugar onde ergueu sua roça foi tomado por uma imensa caixa d'água de concreto, instala¬da pela companhia de saneamento básico da cidade. Mas as lembran?as do "Pai da Goméia" continuam vivas para os mora¬dores mais antigos, e sua memória continua preservada nas muitas histórias contadas a seu respeito, por aqueles que o conheceram bem de perto.